quinta-feira

Saindo da Linha...

Rodolfo entrou no ônibus. Tirou do bolso de trás da surrada calça jeans as moedinhas que lhe haviam sobrado e entregou-as ao trocador que, pim! pim! pim -, bateu com uma delas na haste de metal ao seu lado, sinalizando para o motorista dar a partida.

Rodolfo viu um lugar vago à janela e lá se aboletou. Daqui a pouco o veículo estaria superlotado e ele não iria querer sentar no "desculpe", apelido que o carioca inventou para aqueles lugares que ficam rentes ao corredor, onde todo mundo passa em meio a cotoveladas, bolsadas, bundadas, "pauladas", e desconta como pode, disfarçadamente, na cabeça de quem neles se acomoda para logo em seguida se desculpar.

O coletivo vinha de Copacabana com destino a um dos maiores subúrbios do Rio e ele olhava sem qualquer interesse a paisagem de todos os dias, - o Pão de Açúcar, a baía de Guanabara, o Aterro do Flamengo, sem se dar conta de que corria diante de seus olhos uma das belezas mais cobiçadas pelos turistas deste planeta.

Depois de enfrentar o engarrafamento do centro da cidade, já à altura da Avenida Brasil, não havia lugar nem para um microscópico ácaro. Rodolfo, a cara na janela aberta, escapara também do mix de cecê com bafo da cachaça que faz o "happy hour" de quem pega na britadeira. E apesar de cheio, - cheio não: entupido! -, o motorista teimava em parar nos pontos para novos passageiros. Claro que os adjetivos endereçados à senhora sua mãe já estavam competindo com os da mãe de qualquer juiz de futebol.

Rodolfo estava até acreditando que aquela era uma das viagens mais tranqüilas que fizera desde que arranjou esse emprego de entregador de supermercado em Copacabana quando ouviu o som de alguém sendo estapeado. Vinha lá dos fundos do ônibus.

- Seu cretino! Tira esse negócio daí... Plaft!
- Minha senhora, é só o cabo do meu guarda-chuva!...
- Pois então vá encostar o cabo dessa merda na tua mãe... Plaft!

A gargalhada fazendo a curva.

O rapaz franzino, a cara estampando as bofetadas, tratou de dar mais uns passos à frente, não sem ouvir muita reclamação, muito palavrão das pessoas que necessitava incomodar para ganhar distância da tal mulher. Veio vindo, naquele empurra daqui, empurra dali, até que parou quase em frente ao banco em que Rodolfo e uma mulher de carnes fartas, mas bem torneadas haviam se sentado. O rapaz ficou lá, quietinho, encolhidinho, as faces vermelhinhas como provavelmente jamais estiveram.

E o motorista parando para novos passageiros...

Um rumor reclamatório... Alguém cujo corpo mais parecia uma mola, veio se entortando para um lado e outro, e parou bem junto do rapazote que fora estapeado. Só que o sujeito estava cheio de sacolas. Rodolfo percebeu que a mulher ao seu lado estava incomodada com aquelas bolsas sacudindo bem pertinho do seu nariz. E para afastar-se delas, cada vez mais o espremia em seu lugar. Vez em quando, a mulher reclamava. Entretanto, ao invés de procurar melhor acomodação para os volumes, o estrupício parecia esforçar-se em atingir o alto da cabeça e o rosto da desconhecida. De repente, a mulher "cresceu". Parecia um vulcão prestes a entrar em erupção...

- Tenório... TENÓÓÓRIO! ACORDA, AMORZÃO!...

Dois bancos à frente um incrível "hulk" com cara de sono levantou-se e olhou para trás:

- Que foi, amorzinho?

- Me tira daqui este sacana sem semancol que está enfiando suas sacolas na minha cara. - E apontou o passageiro-mola.

Rodolfo nunca viu nada igual. O "amorzão" parecia possuído pelo demo. Não havendo espaço no corredor do coletivo, pulou os dois bancos que o separavam da mulher pisando em seus ocupantes e fazendo estragos consideráveis em seus pertences. Enquanto estes reclamavam, ele já estava tentando acertar o "sacana" das sacolas que, apavorado, deixou-as lá mesmo onde estava e se esgueirava por entre as pessoas tentando alcançar a porta de saída. O "armário embutido", pelo sim, pelo não, largou a primeira porrada no baixinho do guarda-chuva que desmilingüiu-se entre os passageiros que estavam de pé e que, arrochadíssimos, empurravam-no uns para os outros como se fosse um boneco joão-bobo.

- Pára, motorista! Paraê, porra, que neguinho tá querendo me transformar em extrato de tomate... - O gigante quase alcançando o homem-mola...

- Só posso parar no ponto!

O homem-mola, desesperado enfiou-se pela janela do passageiro sentado no primeiro e solitário banco, o "egoísta". Mas... Tiro na água! Ficou travado pelos quadris: metade do corpo à disposição do titânico "amorzão".

E tome porrada na bunda e na coluna vertebral... E a turma do deixa-disso em coro:

- Chega! Você vai matar o carinha...
- O mundo não vai perder grande coisa... - E tome bordoada...

O motorista avistou um carro da polícia e sinalizou. Quando o ônibus parou, o sujeito saltou e passou a esmurrar a cara do passageiro pelo lado de fora até que os policiais se aproximassem e, com muita dificuldade, o algemassem.

No chão, o esbofeteado do guarda-chuva e a "rolha" de janela. Hematomas, sangue, - ambos desmaiados ou mortos, - foi o que o policial que chamou os paramédicos informou pelo rádio.

Na hora de juntar testemunhas, sobrou pra Rodolfo. A mulher meteu-lhe o indicador na cara, apontando-o para os policiais:

- Ele viu tudo!

Pobre Rodolfo! Quase foi preso junto com o "demolidor", - os policiais acreditando que era amigo de amorzinho e amorzão. Carteira de identidade, cpf, carteira de trabalho, número de telefone de conhecidos, Rodolfo teve que provar por a + b que jamais havia visto aquelas pessoas.

Quando finalmente conseguiu sair do distrito policial, acompanhado do advogado que o patrão lhe enviara, pensou estar sonhando...

Agora, ônibus no horário de rush nunca mais! Apesar da claustrofobia, um luxo que não combina com a sua condição de pobre, Rodolfo só vai e volta do trabalho de metrô.

Ai, ai...